uma vida comum

Vale-Niti
3 min readNov 3, 2022

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comecei a escrever em meio a pandemia da Covid-19. naquele tempo, sentia meu corpo preso em casa. as paredes me assustavam, dizia para minha mãe que o futuro era assustador. e foi.

hoje, vivos permanecemos. estamos quase lá — prontos para realizar o sonho de uma família trabalhadora: a casa própria. em suma, pagamos ao banco o quadruplo do valor para que possamos existir e viver. reféns do banco — reféns do capital.

esse capital que me atormenta noite e dia. sinto-me invadido por ele e seus tentáculos gananciosos. vejo meus iguais serem mortos pelo cotidiano. alguns se matam, outros adoecem, outros são assassinados pelos fascistas; alguns morrem e continuam de pé.

a vida que escrevo parece não condizer com a realidade: escrevo dentro e vivo fora. Em poucos momentos é que me lembro que há um organismo pulsante dentro de mim. A obstrução da realidade sobre a subjetividade nos torna tão passivos diante de nós que esquecemos que temos um dever interno diante do fim que nos aguarda.

Penso que nos momentos de introspecção é que recordo do quanto amo a vida, amo à mim e meus iguais. meus irmãos de luta, meus amigos, minha família. amo o cotidiano e seus destroços largados ao léu. me surpreendo à cada passo dado. repito os passos enquanto aguardo o fim da humanidade. para mim, internamente, já é claro nosso fim. todos sabem. a morte rodeia meu quarto e a esfera de um globo que gira no espaço.

a humanidade parece adentrar em meu peito e dizer: é tudo que tu tens, viva. miserável sou de esquecer-me que em minhas mãos está o destino de apenas um homem e de ninguém mais.

acreditava quando menino que o nazismo havia sido massacrado. sonhava em voar nos aviões da Airbone, conversar com soldados americanos e ingleses; descobri que os nazistas estão vivos e são meus vizinhos.

a minha vida não poderia ser regida pelo amanhã já que em mim é necessário haver o hoje. diante do caos que se instaura lá fora, me vejo diante de mim. Jung estava certo, ele sempre esteve certo. o mundo é um caos e o homem é o seu maior causador.

se não resolver o medo que me compõe, como irei auxiliar meus iguais-diferentes-próximos-distantes? minha armadura e escudo não podem suportar as balas de um mundo todo. não posso ser atlas, não sou um deus.

os amores de um homem comum, a vida de um homem comum, o destino e o fim de um homem comum. sou como todos os outros que vieram e virão. eu nem tenho idade para morrer e mesmo assim penso no quando virá e se será hoje ou amanhã. penso como sofro, penso como me saboto.

lá fora as metralhadoras atiram para matar e dentro de mim responsabilizo-me pelo fim daqueles que não pude salvar. penso nos animais, na cultura, na fé. minha culpa não é uma culpa branca ou balela ocidental. minha vida não é regida pela repetição ou julgamento. vivo em mim o mundo a minha volta. sinto cada animal, cada humano, cada pedaço de terra infértil e cada árvore caída. sei que não sou o filho de um deus. sou um humano, com tarefas humanas.

para evitar o fim desta terra, é que escrevo. escrevo para mim e para todos que amei. escrevo para que no fim meus olhos se abram e relembrem que algum sentido dei ao meu nome: povo vitorioso. composto de iguais, composto de divergências. sou eu no mundo em queda.

apesar da mãe, apesar do outro, apesar dos fascistas e apesar do fogo, sou eu e apenas eu. dono de um caminho que acredita não ser relevante. dono de uma cabeça desinquieta e um corpo lotado de vícios.

corpo despedaçado e colado aos prantos para que o eu vivesse. não sucumbi aos conteúdos internos; será que sucumbi ao mundo externo? o psicótico invertido que esqueceu-se das fantasias e grudou-se ao dia-a-dia infernal.

tenho plena certeza que meus iguais estarão aqui no futuro; farei de mim algo belo e precioso. minhas ideias são valiosas para mim. as ideias de um futuro só meu e apenas meu. se o planeta morrer, morrerei junto. sou habitante deste mundo. o próximo não sei se existe, mas espero que não seja tão infernal quanto este que me entristece.

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Vale-Niti

Meus textos são medianos, meus poemas são rasos e meu vocabulário é limitado — mas eu continuo escrevendo.